domingo, 21 de setembro de 2014

Crônicas semanais da vida diária #4


Pronomes Pessoais I


ELA

Ela desceu as escadas da estação de trem rumo à plataforma. Vestido estampado, batom vermelho e um celular branco na mão. Aparentava felicidade e trazia nos lábios um sorriso vazio que só as ilusões que construímos para nós mesmos nos permitem ter.
Chegou de manso e puxou assunto.
Contou do namorado que a buscava sempre, mas haviam roubado o carro dele e ela estava indo encontra-lo. Ele morava em um bairro distante, mas esse não era problema para ela mesmo estando cansada. Aparentemente o ato de busca-la fazia parte de um ritual. Buscar e trazer religiosamente no mesmo dia e no mesmo horário. 
Ela se cala e estabelece com ele uma conversa freneticamente silenciosa ao celular e, após alguns minutos, retoma do nada os relatos de suas aventuras amorosas. Depois, desistindo de falar sentou. Acho q não fui uma boa ouvinte, pois logo a seguir puxou conversa com o rapaz sentado no banco e que se mantivera calado até seus pensamentos terem sido assaltados pela moça de lábios vermelhos que punhetava energicamente o celular. 
Ela repetiu a mesma história com os mesmos atores e passei a perceber a necessidade de reafirmar o ritual dela e do namorado. Passei a observar, de fora, suas palavras e elas me pareceram tão vazias como quando narrou sua história pra mim. Mentiras repetidas tantas vezes se tornam verdades. E ela queria tanto acreditar naquela história.

ELAS 

Elas estavam se vendo pela primeira vez e logo iniciaram um diálogo. Enquanto lavava o cabelo da cliente iam, ambas, lavando a alma das sujeiras que às vezes impregnam a vida como aquela gordura q enfeia a cozinha quando fica muito tempo sem ser removida das paredes.
Foram para a cadeira, cliente e cabelereira, e ambas teceram suas dores. O barulho do secador era a trilha sonora daquele momento e iam madeixa a madeixa destecendo as traições e os abandonos pelos quais tinham passado (uma a dois anos a outra a dois meses). Almas escovadas pela vida e por pessoas confusas que surgiram no decorrer de suas histórias. Elas desfiavam seus contos e assim se descobriram mais fortes. Uma mudando o visual na esperança que ao matar a si mesma (simbolicamente falando) possa enterrar o passado que sobrevive a passagem do tempo. A outra tentando suportar a dor e a culpa de um sentimento que flui por uma estrada de mão dupla, mas cuja uma das vias, apesar da placa de permitido, não tem o trânsito liberado.

TU 

Tu desfiavas no papel frases de libertação. Não conseguia expressar de outra forma a verdadeira avalanche de idéias que no meio da madrugada a acordara. Pegou seu velho caderninho de anotações e ali começou a rascunhar as primeiras frases que passam em sua mente sonolenta até adormecer abraçada ao caderninho, seu confidente de muitas madrugadas. 
Suas bochechas sugando avidamente as palavras daquele rascunho:
Amargas favas de felicidades ilusórias
Realidades de um tempo que nunca tive
Teus sonhos e tuas histórias
Construí nas teias das minhas cicatrizes.
Teu amargor já conheci 
mas és o remédio que cura a dor 
das rotinas das relações vis.

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